Blockchain na Gestão de Resíduos – Perigos e Vantagens
Importância da rastreabilidade de resíduos
Ninguém quer que os resíduos sejam descartados nos locais incorretos, certo? Quando falamos de resíduos recicláveis nós queremos que eles retornem para a indústria de reciclagem, e voltem a ser novos produtos. Quando falamos de resíduos perigosos, queremos simplesmente que eles tenham o tratamento e a disposição final adequada. A lei brasileira atualmente faz uso do Manifesto de Transporte de Resíduos (MTR), obrigatório para resíduos perigosos e facultativo para resíduos recicláveis. O sistema recentemente se tornou totalmente digital pelo Ministério do Meio Ambiente, e seu uso vai ser obrigatório a partir do ano de 2021. Até então o Manifesto de Transporte de Resíduos variava de uso de estado para estado, e em alguns estados, como no Rio de Janeiro, era feito com 4 vias em papel, a 1ª via era assinada pelo transportador e ficava com o gerador, a 2ª via ficava com o transportador, a 3ª via ficava com o destinador ou tratamento final, e a 4ª voltava assinada pelo destinador final para o gerador do resíduo, que devia guardar essas vias porque a qualquer momento poderiam ser exigidas pelo órgão de fiscalização ambiental. Essas vias atestavam a responsabilidade de cada ator da cadeia, mas não é preciso dizer o quanto é difícil o controle disso, e como esse sistema está sujeito a falhas. Diversos países já usam sistemas de rastreamento digital, que podem por exemplo, ser ativados por uma chave em USB e um emissor de sinal, ou até um app em celular, que informa para o sistema do órgão ambiental a saída do resíduo do gerador e sua chegada no destinador final. As limitações desses sistema são principalmente a transparência e a dependência de um sistema central, que pode ter falhas, ser hackeado, ou passar por manutenções, que dificultam o seu uso pelos elos da cadeia.
No caso dos resíduos recicláveis, a rastreabilidade é importante para saber exatamente o quanto de material está sendo realmente reciclado, e quais empresas estão garantindo que seus produtos estão sendo reciclados depois de consumidos. Outra consequência importante, é poder gerar uma remuneração extra para os catadores que estão recolhendo esses resíduos, como cooperativas de catadores e comércios de reciclagem, através da obrigação legal que as empresas tem de garantir uma taxa de reciclagem mínima de suas embalagens pós consumo. O termo Créditos de Logística Reversa surgiu recentemente, e tem gerado grande interesse no mercado de reciclagem.
O que é Blockchain
Se você nunca ouviu falar, ouviu por alto, ou conhece um pouco mas tem dúvidas, vamos esclarecer primeiro o que é Blockchain antes de falar sobre as considerações em relação ao uso do Blockchain na cadeia de resíduos. Já ouviu falar sobre Bitcoin, certo? Bitcoin foi a primeira aplicação prática do Blockchain, que surgiu em 2009, mas teorias sobre esse tipo de algoritmo já existem desde 1984. Mas antes de falar o que é o Blockchain, é importante saber porque ele existe.
Antes do Blockchain só existia uma forma de transferir valor pela internet: através de uma terceira parte confiável. Pense em qualquer transferência bancária, você não consegue transferir dinheiro nem pagar uma conta diretamente pela internet como faz na vida real, usando dinheiro. Você precisa de um banco, que vai transferir seu dinheiro para outro banco, que vai transferir esse dinheiro para a conta da outra pessoa/empresa. Você pode usar um operador financeiro, como Paypal ou MercadoPago, que vai falar com o seu operador de cartão, que vai falar com o seu banco, para o dinheiro entrar ou sair da sua conta. Em todos os casos sempre tem uma terceira parte atestando essa transação. O Blockchain elimina a necessidade de uma terceira parte centralizada, e distribui essa validação por toda a rede. Como? Criando uma cadeia de blocos com registros das transações, que é distribuída pelos nós da rede no momento que a transação é realizada. Esse registro sai simultaneamente do emissor e do recebedor e se espalha pela rede de forma que não é possível fraudar uma transação, como se fosse tentar depositar um cheque sem fundo, ou usar um cartão clonado. Depois que o bloco com o registro é distribuído pela rede ele não pode mais ser alterado, senão gera conflito no registro dos outros nós. É por isso que o Blockchain é conhecido também como Tecnologias de Livro Registro Distribuído (Distributed Ledger Technologies ou DLT).
Existem várias formas de validar essas transações, e cada forma tem suas vantagens e desvantagens. Existem conceitos matemáticos profundos em relação a forma e os limites para garantir o consenso na rede, como a Tolerância de Falha Bizantina (BFT), mas não precisamos entrar em detalhes nisso. Vou falar um pouco somente do caso do Bitcoin para poder entender quais as implicações do uso de Blockchain em resíduos. O Bitcoin usa uma forma de consenso entre os nós da rede chamada de Prova-de-Trabalho (Proof-of-Work), que basicamente significa que os computadores precisam ter trabalho para validar uma transação. E no caso do Bitcoin, esse trabalho vai ficando cada vez maior com o passar do tempo. Existem os nós (ou computadores) da rede que só guardam os blocos, e existem os nós que validam as transações, que são chamados de mineradores, por que eles criam os blocos com os registros, ato que é chamado de minerar, já ouviu isso antes?
Desafios e gargalos do Blockchain
Só que para minerar os blocos (ou validar as transições) esses computadores recebem um incentivo, um pagamentos, por cada transação que conseguem validar, e a forma de validar a transação é resolvendo um problema matemático aleatório criado pelo próprio sistema. Essa forma de consenso gera competição entre os mineradores para ver quem ganha esse pagamento, que vai ficando cada vez mais difícil com o tempo. No início era possível validar uma transação em Bitcoin usando um video-game ou computador comum, hoje os mineradores precisam usar salas grandes cheias de processadores para conseguir validar uma transação por vez, porque o algoritmo se tornou muito mais difícil. De forma prática, é como se os mineradores estivessem tentando quebrar uma senha, quem quebra a senha primeiro ganha um prêmio e a transação é validada na rede, ao passar do tempo essa senha vai ficando cada vez mais difícil.
O Bitcoin tem outra característica, as transações são criptografadas, Ou seja, você pode ver nos blocos o quanto foi transferido por transação, mas você não pode ver de quem pra quem foi feita essa transação, por isso o Bitcoin e outras criptomoedas atraíram a atenção do mercado negro na internet. Existem algumas questões em relação ao Proof-of-Work, como por exemplo, se um dia uma pessoa for dona da maioria dos computadores mineradores da rede, ela pode sim alterar e controlar as transações. Quanto mais descentralizada for a rede melhor, mas com o tempo fica mais difícil validar as transações, e só quem tem condições de ter uma casa de processadores é que consegue fazer esse trabalho, tirando esse poder das mãos de uma pessoa comum.
Existem outras moedas, ou tokens como são chamadas no Blockchain, além do Bitcoin que usam outras formas de consenso, como o Ether (do Ethereum) que usa uma forma chamada Prova-de-Aposta (Proof-of-Stake), ou o Ripple que usa uma forma chamada Prova-de-Correção (Proof-of-Correctness), existem outras, e cada uma tem suas vantagens e desvantagens. Atualmente existem mais de 1000 criptomoedas no mundo. Importante notar que o Blockchain não precisa ser usados só para transações financeiras, ele é usado para contratos inteligentes, aplicativos distribuídos (sem um dono central) e organizações autônomas descentralizadas (DAOs) por exemplo, e é ai que ele se torna interessante para a rastreabilidade de resíduos.
Desafios e gargalhos do Blockchain aplicado a resíduos
Um ponto importante a ressaltar, é que o sistema aceita qualquer informação que seja inserida nele, por isso ele precisa de algum “lastro”. No caso dos resíduos perigosos esse lastro pode ser a massa e código dos resíduos destinados, enquanto no caso dos resíduos recicláveis, um lastro que já está sendo usado é o código da Nota Fiscal Eletrônica (NFe) de venda dos resíduos recicláveis. Então, esses dados tem que ser muito bem cruzados, com a Secretaria de Fazenda por exemplo, para que um reciclador não possa emitir duas notas com o mesmo resíduos, ou usar a mesma nota em sistemas de crédito diferentes. No caso dos resíduos perigosos, um sistema de validação descentralizado reduziria ao mínimo qualquer chance de falha no banco de dados digital, porém é importante que o algoritmo seja seguro ou controlado pelo órgão ambiental, para que não seja hackeado por uma empresa maliciosa com muitos recursos, ou que exponha dados industriais sigiloso.
Já existem algumas empresas no Brasil que usam o Blockchain para rastreabilidade de resíduos, como a Pólen e a Plataforma Verde. É importante se perguntar, qual o ganho esperado com a utilização do Blockchain, em relação aos sistemas que já temos hoje? E uma vez decidido seguir por esse caminho, temos que fazer algumas perguntas como: Quem são os nós da rede? Quem irá validar as transações e de que forma? Existe algum perigo dessa transação ficar “emperrada” porque não é interessante para os mineradores, ou algum risco da transação ser manipulada por um ente que tem controle da maior parte dos nós? Como esse Blockchain se comunica com o SEFAZ e órgãos ambientais? Como é a transparência e de que forma podem ser acessados os registros de cada transferência? Como lidar com custos de transações cada vez maiores, se esse for o caso? O token desse Blockchain está sujeito a oscilações de mercado, que podem gerar uma alteração grande no seu preço e no custo da transação?
Outra questão relevante é sobre a praticidade dessas plataformas, como as pessoas vão conseguir acessar esses sistemas? As cooperativas de catadores, que estão na base da cadeia, responsável pelo processamento de 90% do plásticos e vidros pós-consumo por exemplo, são formadas na sua maioria por pessoas de baixa escolaridade, sem computador e com celular de baixa qualidade. Muitas não são formalizadas o suficiente para emitir Nota Fiscal de venda dos recicláveis. Em muitos estados do Norte, Nordeste, e Centro-Oeste são raras as cooperativas que tem acesso a internet. Como incluir nas plataformas essas cooperativas, que são grandes operadoras na cadeia de logística reversa? Como é a inserção de dados nas plataformas por pessoas com pouca experiência no meio digital?
Só para terem uma ideia dos desafios, a plataforma do Ethereum serve de base para muitos dos contratos inteligentes (Smart Contracts). Smart Contracts são contratos executados automaticamente quando as duas partes recebem o combinado pelo trato. Recentemente a moeda Chainlink, que roda Smart Contracts na plataforma do Ethereum, sofreu um ataque hacker, que fez seus usuários sofrerem um prejuízo de 1 milhão de reais aproximadamente. O ataque durou cerca de 2 horas, mas depois foi corrigido pela rede. Existem outras plataformas para rodar Smart Contracts, apps descentralizados (dapps), DAOs, e créditos de logística reversa, como a EOS e a IBM (sim a grande marca de tecnologia), que lançou sua própria plataforma em Blockchain a alguns anos.
Uma coisa é certa, o Blockchain inaugurou a era da Internet de Valor (que antes era só Internet de Informação) e veio pra ficar! Mas justamente por ser uma tecnologia nova, ainda precisa de muitos ajustes e está sujeita a muitas falhas que podem ser exploradas por pessoas mal intencionadas. Isso não significa que essas tecnologias não devam ser utilizadas, pelo contrário! Por exemplo, existem estudos de lixeiras inteligentes que se comunicam com as centrais de coleta por meio de plataforma de blockchain. Só precisamos estar atentos, e procurar desenvolvedores de confiança e com sensibilidade sobre seu uso, quando formos usar ou indicar essas plataformas para a rastreabilidade de resíduos!